domingo, março 05, 2006

ENTRE A INTOLERÂNCIA E A IRRESPONSABILIDADE



Este é um “post” que já esteve na gaveta dos impublicáveis, depois de esperar inutilmente por um ambiente sereno, em que pudéssemos emitir a nossa opinião sem sermos imediatamente conotados com qualquer das ideologias em confronto, atirados para algum dos extremos, que só aparentemente se excluem.
De facto, num mundo superficial como o nosso, dominado pelos mass mdia, onde a força do discurso nasce precisamente do vazio de ideias, num abismo de maniqueismo político e cultural, não se aceitam matizes, e não coincidir totalmente com o opensamento de um grupo é correr sério risco de nos identificarem com o outro.
Estava, pois, na gaveta, o “post” que aqui vai, um pouco mutilado por influência dos últimos acontecimentos e dos discursos que sobre eles nos vêm de todos os quadrantes; não tem qualquer pretensão de novidade, e o seu autor não ficaria espantado se aparecessem a acusá-lo, com a mesma violência, uns de intolerante, inimigo da liberdade de expressão, outros de agressor irresponável, demolidor dos sentimentos e das crenças.
Como terá acontecido com milhões de cidadãos do globo, só soube das caricaturas dinamarquesas pelos noticiários, que relatavam com incrível avidez a violência que se lhes seguiu em alguns países muçulmanos. Friso o alguns, porque, de facto, a maioria desses países não se manifestou, e, mesmo nos primeiros, para tantos milhões de crentes, foram demasiado poucos os que se deixaram manipular por agitadores que, em meu entender, até podiam ser amigos dos autores das famigeradas caricaturas.
Acompanhei os debates, sempre marcados pela violência com que as ideologias, mascaradas ou dando a cara, procuraram aproveitar a ocasião para vender o seu produto. E fiquei triste.
Por isso retirei o “post” da gaveta e fiz dele um desabafo de ciadadão desencantado: desencantado com os detentores do poder dito democrático, mas mais ainda com os nossos intelectuais, que deviam ser as pessoas mais lúcidas, não só para analisarem os factos com objectividade, mas sobretudo para ajudarem o cidadão comum a titrar deles as lições que contêm em ordem ao futuro.
Foi uma pena que se tenha erguido tão alto a voz para atacar, não importa agora quem, nem o quê, sempre em nome de valores abstractos, e não se tenha dispendido o menor esforço numa autêntica pedagogia da liberdade.
Liberdade, que não pode assentar no erro, nem numa verdade puramente abstracta, sem referências concretas ao ser e ao agir humanos… e que não existe apenas pela ausência de amarras, já que o homem só é verdadeiramente livre em função do que desperta a sua capacidade de amar.
É por isso que não basta abolir as leis repressivas para criar uma sociedade livre.
E foi também por isso que reduzir a questão das caricaturas a um problema de liberdades democráticas, de leis mais ou menos permissivas… de encontro ou desencontro de civilizações, me pareceu, no mínmo, uma cegueira imperdoável, que fez com que quem devia aproveitar os factos para abrir os horizontes a um pensamento mais amplo e, como tal mais humanista, se tenha entretido a atiçar novas fogueiras, mesmo quando falava contra elas.
Porque não se pode condenar a intolerância apoiando a irresponsabilidade, nem condenar esta apoiando aquela.
Foi triste. Muito triste mesmo, esta divisão do mundo em dois, levada cabo, não pelos factos em si, mas por quem os mostrou e se meteu a comentá-los, sem se defender devidamente do espírito que lhes estava subjacente, agravando assim o abismo que nos separa uns dos outros, com prejuízo para todos.

1 Comments:

Blogger Zé Henrique said...

Poi... de facto é uma problemática complexa esta da liberdade e da responsabilidade, sobretudo quando nos deparamos com situações práticas como esta das caricaturas onde se toca sobretudo uma outra questão que é a do aproveitamento que alguns fazem de um pequeno facto para o transformarem numa «luta de mundos», e das manipulações que estão por detrás...

12:14 da manhã  

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