sábado, outubro 25, 2008

NAS RAÍZES DA TOLERÂNCIA II

II
Aquiles Estaço, que projecto?

Vestígio de um projecto grandioso?

Não sabemos que tipo de poesia terá Aquiles Estaço cultivado no período que antecede a sua partida para Paris e Lovaina, onde se dedica à Teologia e aperfeiçoa os conhecimentos alcançados no convívio com os melhores humanistas portugueses do tempo, entre os quais se contam André de Resende e os intelectuais do seu círculo.
Do que foi publicado a partir de 1547, ano da edição de Syluulae duae, podemos concluir com segurança que tentou a poesia em todas as áreas da inspiração poética.
Merece especial referência a sua poesia religiosa:
Ainda que, para a esperança de vida do tempo, Aquiles Estaço não tenha morrido especialmente jovem, podemos considerar o que nos deixou, neste domínio, o esboço de um projecto que podemos considerar grandioso:
De facto, escrever em verso latino tudo o que na Sagrada Escritura é considerado texto poético – e não nos esqueçamos de que Aquiles Estaço tinha um conhecimento suficiente do hebraico, para se dar conta da vastidão da tarefa que se impunha – seria uma empresa realmente extraordinária.
A pensar nela, o nosso humanista realizou um trabalho insano, compulsando manuscritos antigos, corrigindo textos, tirando notas...
Os resultados desse trabalho tiveram aplicações múltiplas, devido ao carácter multifacetado da actividade desenvolvida em Roma por Aquiles Estaço.
Mas o projecto da sua juventude ficaria por realizar; não sabemos se por demasiado ambicioso, se por falta de tempo. Provavelmente por ambas as razões, que acabam fundindo-se na vida que Aquiles Estaço é obrigado a viver em Roma: a vastidão do projecto exigiria uma disponibilidade total que, na segunda metade do século XVI, já nenhum humanista podia ter, sobretudo se empenhado, como era o caso do nosso compatriota, num verdadeiro trabalho de renovação interna da Igreja.
Podemos assim afirmar que lhe faltou o tempo – na linha da sincronia (tempo disponível) e na linha da diacronia (tempo vivido) – também pelo carácter, digamos, excessivo do seu projecto.
No ano de 1549, saía em Paris, dos prelos de Thomas Richard, o seu segundo livro impresso.
Na dedicatória desta obra ao Infante D. Luís, filho de D. Manuel, portanto, irmão do rei D. João III, há, entre outras coisas de interesse, o passo que, traduzido, diz o seguinte:
“O que estás a receber, príncipe ilustre, são apenas os frutos do meu ócio; pois não escrevo tais coisas senão quando estou livre e um pouco aliviado dos meus trabalhos de Teologia. E faço-o, para que eu, que tão intensamente cultivei as musas, enquanto era jovem, também as conserve comigo agora, que sou mais velho e, ainda por cima, Teólogo”.
As palavras do nosso humanista inspiram as seguintes observações:
1. Os trabalhos que integram este opúsculo são o fruto da ocupação dos tempos que a sua actividade normal lhe deixava livres – frutos do meu ócio.
Tendo presente o significado clássico do termo ócio, e o que escreve no período seguinte, é legítimo pensar que, na mente do seu autor, o conteúdo deste opúsculo correspondia a algo que tinha grande importância, inclusive para o que estava no centro das suas preocupações, ou seja, a teologia.
2. Aquiles Estaço era um estudante de Teologia aplicado; o que pode explicar, tanto a segurança com que aborda muitos dos temas controvertidos, na sua época, como a riqueza de conteúdo das notas que escreveu nas margens de alguns dos livros da sua biblioteca.
3. Cultivou a poesia quando era jovem
4. Considera-se a si próprio teólogo. Este facto permite-nos, pelo menos, suspeitar de que a Teologia foi uma preocupação de sempre na mente do nosso humanista. E a partir dele podemos também duvidar da justeza da afirmação que desloca para Roma o nascer do seu interesse pela Teologia.
É, portanto, claro que Aquiles Estaço cultivou a poesia enquanto era jovem e quer continuar a cultivá-la: porque gosta de poesia, mas também porque, como fica dito, ela entra nos seus projectos de estudante de Teologia.
Quais sejam esses projectos, não o diz aqui, senão indirectamente, na medida em que afirma querer continuar a cultivar a poesia enquanto teólogo.
Mas di-lo-á mais tarde, quando, decorridos dezassete anos, dedicar a outro amigo – agora da Cúria Romana – os resultados de outros ócios, que eram, afinal, se virmos bem as coisas e como o termo insinua, trabalhos relacionados com o grande projecto da sua vida, aqui referido de forma indirecta.
Entretanto, não será extrapolar demasiado se, tendo em vista aquele “ainda por cima, Teólogo”, concluirmos que Aquiles Estaço pressentia, pelo menos, a existência de uma especial relação entre a poesia e a Teologia: o que certamente, além de se dever à intuição dos humanistas em geral, para quem o estudo da retórica estava longe de corresponder a um intuito meramente estético, se descobria no contacto com as fontes da Teologia, sobretudo a Bíblia e uma parte dos Padres.
De facto, não será por acaso que uma grande parte dos escritos bíblicos são, literariamente falando, obras poéticas e, mesmo os que pertencem a outros géneros, contêm inúmeros textos poéticos.
Bem vistas as coisas, se guardamos um conceito suficientemente amplo de poesia, temos de admitir que, como, aliás acontecia já com os filósofos da Antiguidade, o casamento, digamos assim, da Teologia com a poesia se torna patente nos textos bíblicos, sobretudo do Antigo Testamento, na proporção directa da sublimidade da mensagem que transmitem.
É o que acontece com os escritos dos profetas e os Livros Sapienciais, nos quais se inclui o Saltério.
No Novo Testamento, se deixamos de lado os hinos que São Paulo incluiu nas suas cartas e alguns discursos de Jesus, nomeadamente as parábolas, pode dizer-se que o texto mais poético é o quarto evangelho, cuja sublimidade fez com que a primitiva comunidade cristã desse a João o título de «Teólogo».
Os Padres, principalmente de expressão grega, e são quase todos, nos dois primeiros séculos da era cristã, não precisam sequer de inventar a técnica, que lhes vinha dos grandes filósofos da Antiguidade e se mantinha presente nas escolas, sobretudo devido à permanência do prestígio de Platão e dos seus grandes mitos.
Será por isso que, pelo menos até ao século XII, no Ocidente, os temas da fé mais abordados pela poesia são os que se relacionam com os grandes mitos cosmológicos, como é o caso da criação e do significado teológico do mundo: aqui há uma influência profunda do Timeu, talvez a obra de Platão mais lida no Ocidente, ao longo de toda a Idade Média.
A partir do século XII, por influência de São Bernardo, primeiro, e de São Francisco, depois, a poesia invade todos os temas da vida cristã, mas com um pendor mais místico, que se reflectirá na criação poética de Aquiles Estaço, embora não possamos considerar a sua poesia como poesia mística .

Aquiles Estaço, poeta crente

Em face disto, já não será necessário insistir que os escritos espirituais de Aquiles Estaço, nomeadamente os que se relacionam com novas versões dos textos sagrados, não pertencem a um projecto da velhice, de um humanista que, como diria o Camões das redondilhas «Sôbolos rios que vão» cantasse a sua palinódia:
É claro que Aquiles Estaço não tem a envergadura poética de Camões, nem a profundidade filosófica e a força mística de Pascal.
Mas as razões por que aqui se mencionam essas duas figuras cimeiras da história cultural europeia são outras.
A primeira está no facto de, tanto Camões como Pascal, documentarem diferentes sortes do inacabado. Pois, enquanto para o pensador francês, ele se transforma numa das fontes de engrandecimento da sua imagem, pelo que, no esboço da Apologie de la Réligion Chrétienne, fica da riqueza do seu pensamento, para o poeta lusíada, a dispersão dos seus poemas líricos constitui uma deficiência fatal, que ameaça fechar para sempre aos seus leitores a grandeza da alma que quis falar através dos seus poemas.
A segunda razão parte do facto de Camões ser perfeitamente contemporâneo de Aquiles Estaço, quer pelos anos em que viveu – quase lado a lado, se não no espaço, seguramente no tempo, um com o outro, embora talvez desconhecendo-se mutuamente – quer pelas ideias que, modeladas no que de melhor produziu o Renascimento português, guiaram a sua criatividade e perpassam os textos mais significativos de ambos.
E não seria de todo descabido estudá-los na perspectiva do moderno pensamento europeu, naquilo que tem de melhor e mais específico.
Claro há entre eles uma diferença abissal, se reparamos no génio poético de cada um, partindo do que nos resta da obra respectiva.
O autor de Os Lusíadas não sofre comparação com nenhum artista do seu tempo, nem talvez com nenhum daqueles que, no mundo ocidental, se seguiram ao seu mestre e modelo: ou seja, Virgílio Nasão.
Aquiles Estaco, enquanto criador artístico, é sem dúvida, inferior a Camões: se fosse preciso, bastaria, para nos convencermos disso, comparar a paráfrase que ambos fazem do Salmo 136, ou 137, segundo a numeração da bíblia hebraica, que é a que, neste caso, segue o nosso humanista.
Claro que, independentemente da maior ou menor genialidade, no que se refere à inspiração poética, não podemos esquecer a diferença de posições, perante o texto sagrado. Este, como sabem os especialistas dos géneros literários da Bíblia, sem deixar de ser um texto humano, com todas as características do género a que pertence, reflecte uma fé à qual procura ser fiel, e, segundo a doutrina da inspiração sobrenatural, desenvolve-se dentro de fronteiras especiais, que não existem para a criação puramente humana.
Ora, é evidente que, enquanto Camões podia pegar no salmo como simples fonte de inspiração, Aquiles Estaço, quer pela sua formação teológica, quer pelo contexto em que insere a sua versão, sentir-se-ia necessariamente mais limitado pelas fronteiras provenientes do carácter sagrado do texto.
Por outro lado, mesmo sem entrarmos na já referida polémica Sérgio-Sena, pode dizer-se que o texto do nosso épico pertence, com todo o direito, à poesia mística portuguesa do século XVI, enquanto o de Aquiles Estaço não pode senão incluir-se na poesia de tema religioso.
Se, no campo da poesia religiosa, distinguirmos aquela que apenas se inspira na religião e a que se ocupa das verdades da fé, podemos então falar de poesia religiosa, no primeiro caso, e teológica, no segundo.
Estaço cultiva as duas.
(A continuar)