sexta-feira, outubro 24, 2008

NAS RAÍZES DA TOLERÂNCIA

Tenho andado às voltas com os ecos da visita do Papa à França, que se encantou de modo especial com o seu discurso sobre a Laicidade positiva.
Influenciado por esses ecos, lembrei-me de abrir o baú de lembranças e encontrei lá este trabalho sobre a tolerância no percurso intelectual de um humanista português, que só lamento ter conhecido tão tarde.
Começa assim, para quem quiser lê-lo:
I
Nos finais do século IX, o Papa João VIII, perante a ameaça dos sarracenos, que infestavam as costas do Mediterrâneo, convidava os príncipes cristãos a uma aliança que fosse mais do que ocasional: que dessem coesão política e defensiva à unidade cultural que constituíam já e à qual se dava pela primeira vez o nome de Europa.
Convém notar que nesta altura grande parte do continente, sobretudo a Leste, ainda não tinha abraçado o cristianismo: é precisamente João VIII que dá um impulso decisivo à evangelização dos eslavos, apoiando o trabalho dos irmãos Cirilo e Metódio.
Está, no entanto, claro que a matriz dessa unidade, constituída por povos de raças e culturas diferentes e que o Papa designa por Europa, tem a ver com uma visão peculiar do homem e dos valores que integram a sua existência histórica, que se não era ainda comum, estava a beira de o ser.
Não vamos entrar agora na polémica sobre as raízes cristãs da Europa, ainda que seja nossa convicção de que mais tarde ou mais cedo, ela terá de ser retomada, se não quisermos perder definitivamente algumas das pistas fundamentais para a definição do que será de facto um verdadeiro espírito europeu.
Porque não é de religião, mas de cultura que se trata.
Uma dessas pistas será a capacidade de síntese e integração, no campo dos valores, que lhe vem do fundo cristão do seu pensamento: precisamente o ecumenismo que se quis salvar omitindo no, Prólogo do Tratado Constitucional da União, a referência às raízes cristãs da Europa.
Apesar de todos os acidentes de percurso, avanços e recuos, dos desvios, alguns dos quais pareciam anunciar a perda do rumo inicial, o que se passa no velho continente, de finais do século IX a meados do século XVII – com o tratado de Vestefália a consumar a obra que quis evitar – é a gestação de um espaço cultural que resiste aos nacionalismos mais exacerbados e que tem como fio condutor, mesmo nos momentos de maior esquecimento da transcendência, três frases do escrito mais antigo do Novo Testamento: “Não apagueis o Espírito. Não desprezeis as profecias: Examinai tudo, guardai o que é bom”( 1Tessalonicenses, 5, 18-21) .
É este examinar tudo e conservar o que é bom que permite às culturas antigas – não apenas a greco-romana, mas também as que lhe servem de substrato – entrar em fusão com uma visão radicalmente nova do destino humano e dar corpo a um espaço cultural que não foi possível com nenhuma outra antropologia.
Momentos altos desta gestação, que se tornam evidentes até pelas crises que provocam, são as aparentes redescobertas da Antiguidade a que se deu impropriamente o nome de renascimentos: afinal, o que se passa é a exaltação de alguns aspectos dessa Antiguidade que, quando reencontram o seu lugar no espaço já criado, por uma osmose que chamaríamos vital, provocam o surgir de formas de arte e estilos de vida que, sem deixarem de ser novos, guardam, no entanto, as características essenciais da sua matriz.
Para nos não alongarmos demasiado e ficarmos dentro da língua e do modo de ser português, poderíamos perguntar-nos se não seria oportuno analisar nesta perspectiva, por exemplo, aquilo que, sem grande rigor de critérios, se chamou de “estilo manuelino”.
E que diríamos d’Os Lusíadas, que Jorge de Sena, muito justamente aponta como um repositório de dezasseis séculos de cultura?

1. Vem tudo isto a propósito de Aquiles Estaço, contemporâneo de Camões, nascido, como ele, em plena florescência do manuelino, que também se chama Renascença Portuguesa.
A crítica histórica terá de percorrer ainda um largo caminho para que a historiografia se liberte de muitos lugares comuns e ideias preconcebidas, que, sobretudo no que diz respeito ao que se escreve em Portugal, continuam a condicionar, não apenas a linguagem, mas o próprio trabalho de pesquisa.
Teriam de se multiplicar os estudiosos que partissem para a investigação conduzidos pelo desejo de encontrar a verdade, mais do que pela ânsia de confirmar uma verdade.
Por exemplo, em Portugal, apesar das excepções que já aparecem no nosso panorama científico, a historiografia continua dependente da imagem da Idade Média criada pelos humanistas do século XIV, e quase se não conhece outro conceito de Reforma senão o que foi divulgado pelos historiadores protestantes, que criaram também o conceito de Contra-Reforma, ainda que já na segunda metade do século XVIII e com um significado diferente do que se lhe dá hoje.
Toda a gente sabe que Lutero e os seus primeiros discípulos, pegando na palavra Reformatione (al. die Reformation), retirada dos esquemas conciliares do século XV – “De reformatione Ecclesiae in capite et in membris” – quiseram apenas dizer que procuravam levar por diante a reforma da Igreja que todos pareciam desejar, mas que ninguém conseguia tornar efectiva.
Ainda que contra a sua vontade inicial, o que o monge agostinho fez foi uma autêntica revolução, não propriamente uma reforma da Igreja.
De facto, com Lutero, põem-se em questão aspectos essenciais do cristianismo e altera-se por completo o mapa religioso da Europa.
No mais aceso da polémica, com interesses políticos a meterem–se por todos os lados, extremam-se os campos, e a tão desejada reforma da Igreja, só não se adia mais uma vez, porque reformar-se pertence à sua própria dinâmica :
Movimentos de renovação cristã, na perspectiva do crente, surgem em todas as épocas, como fruto da acção do Espírito Santo no coração dos fiéis.
São desse tipo movimentos, por exemplo, como as fundações levadas a cabo por grandes carismáticos, como Bento de Núrcia (e todos os reformadores da sua linha), Bernardo de Claraval, Francisco de Assis, Domingos de Gusmão, etc., para falarmos apenas dos principais do ocidente europeu, entre os séculos V e XIII.
Mas no contexto das presentes reflexões, estão a referir-se os movimentos de renovação cristã surgidos num ambiente peculiar da Igreja ocidental, nos finais da Idade Média, quando o continente se transformava em todos os sentidos, e as consciências mais esclarecidas se davam conta da necessidade de um regresso às exigências do Evangelho; o que reclamava também uma alteração das estruturas eclesiásticas, demasiado dependentes da função política, então desempenhada por grande parte dos membros da Hierarquia, sobretudo nas regiões do norte da Europa.
Ao apoderarem-se do termo Reformatio, que trazia já um significado teológico-canónico muito específico, os discípulos de Lutero, querendo afirmar simultaneamente a novidade do seu movimento e o radicalismo da resposta que, segundo eles, dava aos anseios da Cristandade, talvez sem pensarem nisso, provocaram o corte com os movimentos de renovação que vinham surgindo na Igreja, desde finais do século XIV
Isso vem criar um problema de dupla dimensão: do ponto de vista sincrónico, os que mais haviam lutado, não apenas por uma reforma das estruturas eclesiásticas, mas por uma autêntica renovação da vida cristã, cujas exigências iam muito para além daquela reforma, viram-se subitamente entre fogos cruzados, com os meios intelectuais divididos em duas posições cada vez mais radicalizadas e, consequentemente, cada vez menos conciliáveis.
O pior é que a agitação provocada pelo envolvimento político de Lutero faz com que se esqueçam os reformadores moderados - que os havia de ambos os lados da barricada -, e a história deste período começa a ser marcada de uma forma verdadeiramente maniqueia, com os historiadores a ver o bem totalmente separado do mal e colocando-os frente a frente, segundo as próprias simpatias.
De facto, o maniqueísmo político está subjacente a todas as ideologias que servem de fundamento à intolerância e à ditadura, um abuso do poder possível em qualquer campo da vida humana; e que se insinua também na análise dos fenómenos do passado, sempre que nos esquecemos de que ninguém, do lado de cá da história, tem o monopólio da verdade.
É por isso que termos como Reforma e Contra-Reforma, sobretudo quando com aquela se identificam as auto - designadas igrejas evangélicas, e com esta a acção da Igreja Católica, em ordem à sua renovação interna, estão na base de muitos erros de simplificação que, além do mais, levam a graves injustiças contra pessoas e instituições.

Temos o exemplo de Aquiles Estaço, que poderíamos comparar com Damião de Góis, já que são quase contemporâneos:
Sabemos que, a nível do pensamento europeu, sobretudo como filólogo, Estaço, cuja autoridade é invocada ainda no século XVII, foi mais conhecido e apreciado do que Góis. E, quanto a abertura de espírito, não parece que os contactos internacionais deste, que não foram mais vastos nem mais variados que os daquele, documentem uma modernidade superior à que se pode divisar em muitos aspectos da vida e dos escritos do autor do “De Reditibus ecclesiasticis et De Pensionibus” .

2. Na perspectiva deste trabalho, e quando falamos de grandes sínteses culturais que definem de certo modo o que designámos por “espírito europeu”, importa referir, antes de mais, o que terá sido o grande projecto literário e teológico de Aquiles Estaço, que chega a Roma provavelmente nos últimos anos da década de cinquenta, do século XVI, e aí morre em 1581. Isto é, passa na Cidade Eterna acima de vinte anos, que correspondem ao terço mais produtivo da sua vida.
Para uma referência, necessariamente muito superficial ao contributo de Aquiles Estaco para a formação de um espírito europeu, podemos tomar, entre outras, duas pistas, ou, se quisermos, dois pontos de referência, ou seja: a criação poética, como projecto e como realização, por um lado, e os comentários bíblicos, por outro.

A um de Março de 1566, Aquiles Estaço dedicava a Jerónimo Rusticucci, secretário particular do Papa Pio V, uma edição comentada dos poemas eróticos de Catulo, com palavras a partir das quais ficamos a saber duas coisas muito importantes:
A primeira é que ele, desde a sua juventude, concebera o projecto de traduzir em verso latino os textos poéticos da Bíblia; projecto que em 1566, quinze anos antes da sua morte, continuava vivo, ainda que adiado, pelos muitos afazeres que pesavam sobre os ombros do humanista.
A segunda coisa que ficamos a saber é que ele, pelas exigências desse mesmo projecto e enquanto não podia concretizá-lo de outro modo, ia aperfeiçoando os dotes que queria pôr ao seu serviço, estudando a poesia clássica latina.
Desse estudo intercalar e dos exercícios que implicava, temos frutos preciosos, para além da referida edição dos poemas eróticos de Catulo.
Também como reflexão intercalar, talvez possamos tirar algumas ilações do facto de Aquiles Estaço fazer esta edição em pleno pontificado de Pio V, que fora o responsável máximo da Inquisição Romana, no tempo de Paulo IV, e os historiadores apresentam como uma das figuras mais típicas daquilo que se convencionou chamar Contra-Reforma.
Mais, Aquiles Estaço dedica esta edição dos poemas de Catulo, profusamente anotada, com explicações de todo o tipo, incluindo os termos mais escabrosos, relativos à vida íntima do protagonista ou dos protagonistas desses poemas, a Jerónimo Rusticucci, secretário particular do Papa; um homem da Cúria, que o conhecia muito bem e ao qual o humanista português devia especiais favores.
É bom notar que Estaço, prevendo o aparecimento de objecções ao cuidado que pôs na edição de Catulo, se defende com um raciocínio muito parecido com o que usa Bartolomeu Ferreira, no seu parecer para a edição d’Os Lusíadas: Que a poesia deve ser apreciada como arte e não como edificação (CONTINUA).