sexta-feira, maio 02, 2008

Balada das Ruas Desertas


Ainda muito combalido pelas mazelas do físico, gasto pelos anos e cada vez mais refractário aos vôos do espírito, quebro o silêncio para oferecer aos visitantes deste blogue uma página do meu diário, agora do primeiro ed Maio
Pela encosta do castelo, no sentido oposto ao que seguem os magotes de jovens subindo para as aulas da manhã, conduzo o carro esutando a Fantástica de Berlioz: tem para mim especial encanto este poema musical, que, segundo alguns historiadores, seria uma composição-desabafo, um lamento do próprio artista, ferido pela perda da amada.
Não costumo distrair-me com os aspectos autobiográficos das obras de arte: porque se elas, por si próprias, não despertam em mim uma real emoção estética, perdem o interesse com que desde muito jovem, aprendi a abordá-las... e na homenagem a quem me iniciou nesse caminho, ergue-se a lembrança da cidade que conheci nos últimos anos da década de quarenta. Já lá vão quase sessenta!
Era uma cidade muito mais pequena, pouco maior que a minha aldeia; mas tinha um encanto que não consigo encontrar-lhe hoje; algumas ruas continuam tão tortas como então, mas estão mais desumanizadas: desertas em dias de festa e intransitáveis em dias de trabalho.
Creio que isto acontece com todas as cidades deste velho mundo, que teima em arruinar-se, pulando para trás, com a ilusão de que progride, que avança cortando amarras inibidoras, quando, de facto, o que está a fazer é cortar as raízes por onde subiu o sumo que fez a sua grandeza e dá sentido aos poucos valores de que ainda pode considerar-se paladino.
Acontece certamente com todas as cidades – estranguladas pela tirania da competição, em tempo de trabalho, e moribundas pelo horror à vida, em tempo de festa – mas torna-se mais agressivo numa cidade como Leiria, pelo menos para quem a conheceu ainda pequenina, namorada das águas do Lis, que nessa altura não eram vítimas da poluição que se lhes conhece hoje.
Por isso e apesar das vantagens que lhe encontro ao volante do carro, me atormenta esta desertificação festiva da minha cidade.