sábado, março 15, 2008

DISTRACÇÕES DE UM PEREGRTINO



Procurando inserir o meu relacionamento pessoal com Fátima no quadro da minha docilidade ao bispo da diocese, como fiel e membro do presbitério, peregrinei também até à Cova da Iria... e cheguei-me ali, ao pé da capelinha, com um especial desejo de concentração no essencial.
Por isso resisto, mais uma vez, à tentação de um novo discurso contra esta troca da palavra terço pela palavra rosário.
E fixo-me nos conteúdos do que se vai dizendo, rezando ou cantando.
Mas no mesmo momento em que me concentro, o objecto dessa concentração torna-se fonte de novas distracções:

A palavra é o resultado de um esforço gigantesco do espírito humano para vencer as barreiras que os condicionalimos da matéria põem à sua natural ânsia de comunicar.
Um instrumento onde o físico e o fisiológico se casam de forma única com objectivos e conteúdos espirituais, apesar da sua funcionalidade, teria de ser necessáraimente inadequado: e é no seio desta inadequação que nascem e se desenvolvem os grandes equívocos da história das ideias; mas é também essa inadequação que produz a poesia e tantas outras maravilhas da arte de comunicar. E se é verdade que nunca conseguiremos dizer uns aos outros tudo o que temos o desejo de dizer, também é verdade que ao fazer-nos à Sua imagem e semelhança, Deus nos concedeu um número quase infinito de possibilidades... e, pasme-se, para que entre essas possibilidades estivesse a de falarmos com Ele, ao Seu nível, a Sua Palavra fez-Se nossa Palavra:
« E o Verbo fez-se homem
e veio habitar connosco.
E nós contemplámos a sua glória,
a glória que possui como Filho Unigénito do Pai,
cheio de graça e de verdade.» (João: 1, 14)

Em princípio, ninguém duvida de que a mentira – uso da palavra, não para comunicar, mas para enganar - antes de ser um pecado que onera a consciência de quem o pratica, constitui uma grave desordem ética, pelo desrespeito do modo humano de estar no mundo que implica.
O problema está em que geralmente não se pensa nisso.
Todos mentem, e ninguém gosta que lhe mintam. Nem mesmo com as tais mentiras que dizem não dar prejuízo.
Porque, ainda que se pense o contrário, isso de dar ou não dar prejuízo não tem que ver com a mentira, mas com a injustiça, a falta de respeito pela propriedade alheia.
Distraio-me com estas ideias ao reparar na repetição quase obsessiva da palavra ternura.
É verdade que ela está no centro do tema fornecido pelo bispo diocesano para esta peregrinação. Mas as palavras não se gastam só pelo uso ao longo das gerações: o seu emprego excessivo em determinado momento banaliza-as, transforma-as em lugares comuns, sem significado.
A não ser que se introduzam numa dinâmica publicitária: porque então, o repeti-las obsessivamente tem como objectivo tirar aos ouvintes a capacidade de opção livre, em ordem ao consumo que se quer impor.
É o mundo específico da mentira dos mercados.
Não sendo esta a circunstância em que nos enocontramos, é de temer que com tanto falar na ternura de Deus, insistindo em dar a Maria o título de Mãe da Ternura, acabemos por ocultar ao comum das pessoas a grande verdade que se lhes quer comunicar.