domingo, janeiro 13, 2008

QUEM TEM MEDO DE QUEM

I
INTRODUÇÃO

Desde os últimos dias do ano findo que me assalta teimosamente a vontade de escrever sobre o assunto: mas assalta-me igualmente a dúvida, às vezes também o medo. Isso mesmo: o medo de falar dos nossos medos.
Vou tentar abrir a janela com um texto que nasceu aqui, em Roma, quando há mais de dez anos, nesta cidade, preparava o trabalho em que depois foi inserto.
Fala-se do século XVI, mas tomando-o como fundo no qual, segundo a minha opinião, podemos descobrir algumas chaves para as nossas inquietações deste início de milénio.
Aí vai o texto, naturalmente de compreensão um pouco amis difícil, por lhe faltar o contexto:
Na imensa confusão deste período – confusão que, em si mesma considerada, tem muito de positivo – as primeiras vítimas, como já prevenira Cristo na parábola do joio que os criados incompetentes queriam arrancar da seara nascente, foram precisamente os que os extremistas diziam querer salvar .
Todos sabemos que heresia e ortodoxia são palavras que o uso, no campo religioso, como em qualquer outro onde tome importância o debate das ideias, transformou em bandeira de combate que raramente favorece a verdade.
Esta sobreviverá a todos os naufrágios, não pela violência dos que matam em nome dela, mas pela teimosia dos que morrem por ela. Foi assim neste século, será assim em todos os tempos e em todas as latitudes.
É por isso que não entusiasmam muito certas formas de rever o passado, agora com particular impacto perante a opinião pública: porque mais do que pedir perdão pelo erro dos que pensaram servir a verdade matando, o homem do terceiro milénio precisa de analisar a generosidade dos que a salvaram morrendo por ela.
Morrer pela verdade é também dedicar-se às tarefas sem brilho, à abertura dos caboucos, ao transporte dos materiais... a função do servente, que nunca aparecerá na lista dos arquitectos, desses de que se ocupará, por toda a espécie de razões, o discurso histórico, sem nunca dizer o nome dos que tornaram possível a sua fama.
Não vai muito longe o tempo em que o ensino da história pátria se limitava ao elenco das guerras e dos heróis que as ganhavam.
E diz-se ganhavam, porque só eram tomadas em consideração as guerras ganhas: por isso não se falava daqueles que as haviam provocado, a não ser quando se podiam contar entre os heróis da vitória final, mesmo que as vicissitudes da guerra lhes não tivessem permitido ver tal vitória.
Esta mentalidade ficou de tal modo arraigada na nossa cultura, que ainda hoje se tende a procurar, na história do pensamento, quer filosófico quer teológico, mais uma história da heterodoxia do que a fecundidade da inteligência humana, quando reflecte sobre a verdade: verdade que tanto pode estar assente apenas nos postulados da razão – a verdade filosófica – como apoiar-se na luz da Revelação – a verdade teológica.
É evidente que, tanto num caso como no outro, caminhando por tentativas, nem todos os passos são bem sucedidos: muitas vezes o caminho torna-se de tal modo sinuoso que alguns ou têm a coragem de repensar a caminhada, voltando mesmo atrás, para seguirem novos rumos, ou se perdem por completo. Destes, quando filósofos, diz-se que erraram; quando teólogos, diz-se que caíram na heresia.
Claro, falamos de verdades sobre as quais não pode haver duas opiniões; e, mesmo assim, no campo da teologia, nem todo aquele que erra é um verdadeiro herege: porque pode haver muitos erros, em questões que, embora porventura importantes na vida de certos crentes, não pertencem àquele corpo de verdades que fazem e cimentam uma comunhão de fé.
Não se nega que também os desvios, as guerras, os erros e as heresias fazem parte da história das sociedades, dos indivíduos e das nações.
E no campo da teologia, como na história da Igreja, as heresias e os cismas foram sempre ocasião para se aprofundarem verdades – umas vezes esquecidas, outras vividas de forma demasiado imperfeita, quando não errada -, e de se corrigirem modos de estar no mundo já não condizentes com a missão recebida do Fundador.
O que não se aceita é a importância que se lhes tem dado, em detrimento precisamente daquilo que muitas vezes está na sua origem: ou seja, a insatisfação e o inconformismo da pessoa humana; insatisfação e inconformismo dos quais nasce todo o progresso.
Ora esta insatisfação e este inconformismo, que fazem avançar o género humano para a plenitude do seu destino, não se revelam apenas na heterodoxia. A história – concretamente a do século que nos ocupa – está mesmo recheada de acontecimentos, aparentemente revolucionários e que, no entanto, pela impaciência que os faz eclodir, só não acabam matando o progresso, graças, quer à generosidade de alguns dos seus protagonistas, quer à força da verdade que, apesar de tudo, encerram .

1 Comments:

Blogger PA said...

Caro AP: Tomo a liberdade para escrever umas linhas à margem deste texto com o simples objectivo de as fazer chegar a si. Nem imagina quanto essas palavras são, para mim, um alento. E vindas de quem aprendi, para lá das lides académicas, a apreciar e a respeitar, elas têm um valor que, de certeza, não mereço. Não sou poeta, admito francamente, naquele sentido de que um poeta é-o amiudadas vezes, no exercício da pena e da escrita. Mas tenho o grato privilégio de poder ter aprendido com gente sábia o valor das coisas belas e menos belas e esforçar o seu rabisco em palavras escritas. Obrigado.

10:19 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home