sábado, outubro 25, 2008

NAS RAÍZES DA TOLERÂNCIA III

III

Ecumenismo e fé na misericórdia divina

Por estranho que pareça, sobretudo se tivermos em conta uma certa imagem criada nos últimos séculos relativamente ao humanismo da Reforma, nem Lutero nem os seus discípulos imediatos favoreceram muito o discurso sobre a misericórdia divina.
De facto, ao querer realçar o carácter absolutamente gratuito da salvação, no que estava perfeitamente de acordo com a tradição teológica mais genuína, não soube evitar o escolho em que o próprio Santo Agostinho esteve à beira de soçobrar, quando polemizava com os pelagianos, demasiado confiantes nas capacidades da natureza humana.
Pode dizer-se que todas as controvérsias do século XVI sobre a justificação e a graça, após o Concílio de Trento, principalmente dentro da Igreja Católica, onde nunca cessaram as tentativas de estabelecer pontes que permitissem o diálogo com os teólogos da Reforma, se balanceiam entre estes dois extremos: o que leva muitas vezes ao esquecimento do essencial, definido na sessão sexta daquele Concílio, mas que corresponde aos aspectos mais importantes de tudo quanto, depois de São Paulo, se ensinou sobre a radical novidade de Jesus Cristo, que veio revelar os extremos do amor do Pai.
Da sua poesia de Aquiles Estaço, tomamos apenas um exemplo:
O poema “Cuius querellas gentis ante et flebile”, inspirado na história do Povo Hebreu, que Deus, mediante maravilhas de vária ordem, liberta da escravatura do Egipto e depois conduz através do deserto, até à sua chegada à Terra Prometida, ou seja ao vale do Jordão.
Deus escuta as queixas do Seu Povo (Ex 3, 7 sgs.), o mesmo que manifesta a sua alegria depois da libertação e da extraordinária travessia do Mar Vermelho (Ex 14.), as dificuldades da travessia do deserto e as obras maravilhosas – isto é, dignas de serem vistas e cantadas – com que Deus acode aos Seus eleitos ( Ex 16-17.) .
Destas, o poeta menciona expressamente:

A travessia do mar a pé enxuto (Ex 14, 15-30, vv 5-8).

Já no deserto, o alimento vindo do céu – o maná e as codornizes (Ex 16, vv 9-13).
Depois, ainda no deserto, a água que jorra da rocha, após as pancadas ordenadas por Deus e executadas, aliás, numa atitude de pouca fé, por Moisés (Ex 17, 1-7, vv 13-16),
Não se publica o texto latino para abreviar, ainda que formalmente seja um bom exemplo de poesia neo-latina.
Além disso, tem interesse notar a riqueza emotiva que Aquiles Estaço consegue incutir no seu poema pelo estilo pessoal que utiliza, pondo--se no lugar do povo escravizado, até aos versos finais, onde com uma linguagem que nos faz pensar em Virgílio (Aen. 1,94; 12, 155), felicita esse povo, por ser regido, defendido e guiado por um Deus que compara o cuidado com que protege o Seu povo à ternura da galinha protegendo os pintainhos sob as suas asas; uma imagem de profundas ressonâncias bíblicas, que não encontramos no Antigo Testamento, mas que nos leva até lá, a partir de Jerusalém, sobre a qual Lucas constrói essa outra imagem da misericórdia divina, que é Jesus chorando sobre o destino trágico da Sua Pátria (Cf Mt 23, 37; Lc 13, 34-35; 19, 41-44).

Ora, desta revelação, em termos de linguagem verbal, o discurso mais belo, até do ponto de vista literário, encontra-se em Lucas, capítulo XV, versículos 11 - 31.
É a chamada parábola do Filho Pródigo, que Jesus contou, como é fácil de ver, com o apoio de todo o contexto deste capítulo, não para falar do filho, mas para revelar os abismos de misericórdia do Pai.
Aquiles Estaço deixou muitas apostilas no Evangelho de Lucas; porém, quanto ao capítulo quinze, que contém as três parábolas da misericórdia divina, debruçou-se de modo especial sobre a parte referente à terceira, a única que apostilou.
No seu trabalho, manifesta-se a cada passo o filólogo, preocupado com a autenticidade do texto, que procura comentar com a ajuda dos Padres da Igreja e outros testemunhos da Tradição.
E esta é primeira nota de modernidade, importante, não por ser original, mas por denunciar uma linha de “contra-reforma” que não costuma referir-se, até porque não corresponde ao conteúdo semântico actual da palavra.
Mas nas notas a esta parábola encontramos também algumas reflexões pessoais sobre o pecado, a conversão e a misericórdia divina, que servem para documentar, mais uma vez, a posição de Estaço, entre os fogos cruzados dos controversistas do seu tempo.
São notas de grande importância teológica às quais se pode dar uma ordenação sistemática, seguindo muito de perto a estrutura narrativa do texto de Lucas, 15, 11-32.
De forma muito sumária, essa estrutura pode desenhar-se assim:
O filho mais novo, uma vez recebida do pai a parte que lhe cabia na herança, parte para «uma região longínqua» (11-13).
Consequências do afastamento da casa paterna (14-16).
O filho tresmalhado, recorda-se da casa do pai, mede o estado em que se encontra e decide regressar (17-19).
A festa do reencontro (20-24).
O pai justifica-se perante o filho mais velho (25-32).
Como é fácil de ver, a cada troço narrativo corresponde um momento importante daquilo que poderíamos designar por dinâmica do pecado e da conversão, vista, tanto do lado do pecador, que ofende, como do lado de Deus, que perdoa.
Como para o nosso intento interessa sobretudo o comentário de Estaço ao último troço narrativo, passamos a ele imediatamente:
O clímax atinge-se no versículo 20, quando o pai, ao ver o filho ainda longe, se lhe lança ao pescoço, cobrindo-o de beijos.

A descoberta de Lucas como o evangelista da misericórdia divina, mais preocupado em captar os gestos e as palavras que revelam essa misericórdia do que em descrever o percurso da conversão por parte do pecador – ou não fosse ele discípulo de São Paulo – esta descoberta é relativamente recente, na exegese católica.
Isso explicará o facto de o nosso humanista não ter deixado qualquer nota a este versículo, que, segundo tudo leva a crer, foi objecto de um cuidado especial por parte do redactor do texto evangélico.
Aliás, ainda hoje, como o documenta o nome que se dá a esta parábola, o texto é lido mais na perspectiva dos actos do pecador do que pensando no amor misericordioso de Deus.
Aquiles Estaço escrevia na segunda metade do século XVI, após a polémica com os reformadores, que negavam ao pecador toda a possibilidade de cooperar com Deus na sua conversão.
Contra eles se dirigiam de modo especial os cânones do Concílio de Trento, que, sem negarem o facto de ser Deus a tomar a iniciativa, afirmavam igualmente a capacidade de o homem colaborar com Ele.
Num ambiente de controvérsia, como era, a este respeito, o século XVI, qualquer tendência a acentuar um dos aspectos poria de sobreaviso os defensores dos outros, que não hesitavam em classificar de hereges os que não estavam claramente do seu lado.
Além disso, é normal que um humanista do século XVI, desejoso de contribuir para a formação prática dos crentes, no sentido de realizarem correctamente os actos correspondentes à doutrina fixada pelo Concílio, fale da conversão, mais na perspectiva do pecador do que na de Deus.
E este era o caso do nosso humanista.
Assim, põe em realce a sinceridade do filho e a corajosa humildade com que reconhece ter ofendido Deus e o pai.
Estaço lê a expressão “pequei contra o Céu”, enquadrando-a na situação concreta do guardador de porcos, conseguindo assim tirar dela um partido especial: “Pequei contra o Céu, para o qual não levantei os olhos, à imitação dos porcos que pastoreei”.
Que se confessa indigno de ser considerado filho de tal pai, mas trata-o como tal, na esperança de alcançar o perdão.
E quanto ao “quando ainda vinha longe”, parecem interessar-lhe mais os aspectos canónicos da conversão e os seus efeitos imediatos do que a iniciativa de Deus e a generosidade do Seu perdão: assim, fala dos frutos da contrição, sem deixar de referir a necessidade da confissão auricular, “se for possível”.
É a doutrina confirmada pelo Concílio de Trento, ainda hoje presente na pastoral do sacramento da Reconciliação.
No entanto, além das referências indirectas, contidas nas alusões à conversão do pecador, Aquiles Estaço termina o seu comentário com um epifonema semelhante a tantos outros que, a despeito da sua reserva, quanto a exprimir emoções pessoais, lhe escapavam em determinados contextos:
“Como é grande a bondade de Deus!
Recebe como filho aquele que queria ser assalariado”.

“Havia, porém, o filho mais velho) O pecado torna-se não raro frutuoso, quando os pecadores arrependidos entram em si e abraçam a prática da virtude com mais afinco do que os que sempre viveram em graça.
Para os que amam a Deus tudo contribui para o bem, «até o pecado», acrescenta Agostinho.
Tu estás sempre comigo) Louva-se a perseverança no bem. Vós que permanecestes a meu lado, nos meus trabalhos.
Tu, diz, estás sempre comigo, porque quem não está com Deus morre. Pois acrescenta: Este teu irmão estava morto; no entanto, com ele estivera o pai”.
Dir-se-ia que, neste comentário, com a preocupação de aproveitar o tema da perseverança, que ele vê desenhada no filho mais velho, Aquiles Estaço perde a direcção tomada no comentário à expressão havia, porém, o filho mais velho, naquela referência ao facto de o pecado, uma vez assumido como tal, servir melhor, por vezes, o progresso espiritual do que a simples permanência na graça.

De facto, para a exegese contemporânea, como, aliás, para os autores espirituais, o filho mais velho, que na intenção de Lucas simbolizava os Escribas e Fariseus, é o protótipo da auto-satisfação do crente sem aspirações, que, a certa altura, vê em Deus, quando olha para Ele, mais um devedor do que um amigo.
Não era, até há pouco, um aspecto muito considerado, já que esta parábola, incorrectamente chamada de «Parábola do Filho Pródigo», era, em geral, lida como exemplo da dinâmica da conversão, quase sempre a partir do pecador.
O nosso humanista parece ter intuído a profundidade da revelação contida no discurso de Jesus, que fala essencialmente da misericórdia divina; mas não tira disso todas as consequências, em parte porque essa temática andava demasiado envolvida em questões especulativas sobre a justificação, a graça e a liberdade... quase como se tudo se passasse no coração do homem, num relacionamento pouco mais que jurídico com Deus.
Em jeito de síntese, pode dizer-se que Aquiles Estaço, nos seus comentários à parábola do Filho Pródigo, não esconde uma certa emoção, que se revela de modo especial quando procura tirar conclusões teológicas e ascéticas do texto evangélico.
Isto é tanto mais digno de nota quanto é certo que a frieza caracteriza grande parte das suas notas, sempre marcadas pela preocupação científica que as carrega de observações de ordem filológica e citações de textos paralelos.
Por outro lado, é necessário não esquecer que Estaço faz o seu comentário já na segunda metade do século XVI, quando as tentativas de reconciliação entre católicos e protestantes pareciam fazer renascer as polémicas dos séculos III e IV sobre o modo de acolher os cristãos relapsos.
Pode dizer-se que a emoção do humanista português nasce também da intuição que o leva a ver na fala do pai com o filho mais velho pistas para um verdadeiro diálogo ecuménico.
Relativamente à teologia do pecado, que, apesar de não ser o tema directo da parábola, é o que desenvolve mais, aliás seguindo na esteira dos comentadores que o precederam, pode dizer-se o seguinte:
Na segunda metade do século XVI, a reflexão teológica sobre as relações da natureza humana com o pecado e a graça move-se entre dois extremos:
De um lado, o pessimismo dos predestinacionistas da linha de Calvino: Deus predestina para a salvação ou para condenação, independentemente dos méritos da pessoa. A estes podiam juntar-se alguns discípulos de Lutero, que, embora não fosse tão radical, ensinava que a natureza humana estava irremediavelmente corrompida e que o pecado era a sua condição normal.
Do outro lado, o optimismo naturalista de certos humanistas, consciente ou inconscientemente dependentes de Pelágio, que, esquecendo os efeitos do pecado sobre a natureza humana, concluíam quase negando a Redenção e a necessidade da Graça.
Aquiles Estaço evita os dois extremos, além do mais, pela sua preocupação de ortodoxia; o conteúdo das suas notas tem como fundo a doutrina dos decretos tridentinos, onde, contra ambos os extremos, se consagra a doutrina tradicional da Igreja, ao afirmar-se a capacidade da natureza humana para colaborar com a Graça.
Mas a Graça é absolutamente necessária, inclusivamente para o início da fé justificante, porque o homem já de si limitado, como criatura que é, leva consigo a peso da «raça» pecadora a que pertence pela natureza, e dos seus próprios pecados.