O EQUÍVOCO DAS PALAVRAS
Todos os mestres que tivemos, todos os livros que lemos e todos os mitos que descodificámos, todos, sem excepção, nos ensinaram que a Grécia foi o berço da democracia.
Há dias, num blog que encontrei quando procurava outra coisa, li que tudo ali começou, inclusivamente a celebração do Dia da Mãe.
E foi esta leitura dos ritos da fecundidade, a partir de uma linda imagem de Reia, com uma das filhas, provavelmente Deméter – referência a cultos que, vindos do Oiente, tinham muito pouco da ternura maternal – que me levou a trazer para aqui alguns fragmentos de uma reflexão que vem de longe e que diz respeito a essa teimosia de considerar a Grécia Antiga como criadora da democracia.
Certo, a palavra, que nos chegou sob a forma latina de democratia, é de origem grega, e, olhando apenas aos elementos que a compõem, poderíamos dizer que significa o poder do povo. Alguns dizem governo do povo, pondo o povo como sujeito desse governo. Mas, de facto, não é tal o significado original da palavra.
Dizer, porém, que os Gregos são os criadores do regime democrático apenas porque, a dado momento da história das suas instituições, Atenas criou uma forma de autoridade a que deu o nome de democracia, só é possível se, com este termo, em vez de nos referirmos às instituições atenienses, estivermos a pôr na Grécia do século V a. C. ideias e realidades europeias dos séculos mais recentes.
Porque a chamada democracia grega, não tinha nada, ou quase nada de comum com a democracia, tal como a entendemos hoje.
Claro que se trata de um regime que surge para corrigir os abusos do poder cometidos pelo governo de um só: a tirania - mais uma palavra que nos pode enganar se a tratamos como a palavra democracia.
Pondo de lado a extrema complexidade dos sistemas de governo nas cidades gregas dos séculos sexto e quinto, digamos que, num certo sentido, a democracia, nesse contexto, significava de algum modo um recuo, pois situava-se entre a aristocracia e a tirania.
Isto é, tendo em conta a etimologia, ao poder dos melhores – aristocracia -, que tanto encantava Platão, opunha-se agora o poder do demos, que não era propriamente o povo, mas um determinado grupo de cidadãos.
E aqui temos outra palavra equívoca: porque cidadão – polites, habitante da polis – na Grécia do século V, não era todo aquele que vivia na cidade – asty, lat. urbs – mas o homem livre, que pertencia a uma minoria de gente rica. E eram só estes que tinham direito ao nome de politai, cidadãos. E só eles podiam participar na assembleia – boulê - que deliberava sobre o regimento da cidade.
De modo que não vejo como se pode falar de democracia, pelo menos como a entendemos hoje, a respeito da Grécia Antiga.
Ou talvez saiba:
A constante e cada vez mais vasta identificação das nossas instituições com realidades semelhantes do passado, nomeadamente do mundo greco-romano, nasce da perda progressiva dos conteúdos superiores com que vinte séculos de cristianismo enriqueceram o nome dessas instituições: enriquecimento de tal ordem, que de muitas delas não ficou senão o nome.
Será por isso que se cometem tantas tropelias em nome da democracia? Que se multiplicam os fracassos da plítica ocidental nas campanhas em prol da democratização de povos que não têm nada a ver com a nossa cultura?
De facto, as modernas democracias europeias, apesar de tantas imperfeições, assentam num princípio impossível de encontrar fora do cristianismo: a igualdade radical de todos os seres, unidos pela sua origem e funcionalidade ao serviço da felicidade do homem, o únco que é capaz de ser verdadeiramente feliz.
O homem, a pessoa humana, que é anterior ao cidadão.
Aliás, quando se começa a falar de iguldade dos cidadãos perante a lei, regressando mais uma vez à Grécia, corre-se o risco de estar a destruir o que é essencial na democracia: o respeito sagrado pelo que nos introduz na cidade dos homens, ou seja a vida.
A vida humana, claro!
Vida que é um processo único, apesar de complexo, sem soluções de continuidade, contendo, desde o primeiro instante da sua existência, um projecto divino que faz dela um dom e uma tarefa: o dom é de Deus e dos corações que a acolhem, a tarefa é de todos, incluindo o Estado, a polis, não a grega, que deixava de lado a maioria das pessoas, mas a cristã, que não conhece senão uma raça, a dos filhos de Deus.
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