AS MALHAS DA HIPOCRISIA
Repare-se que não falo de hipócritas mas de hipocrisia: não me refiro às ciladas dos que conscientemente usam os instrumentos de comunicação para esconderem o que realmente são e pensam, mas ao ambiente geral, à prática dos discursos que se encerram numa tal manipulação.
Falar das malhas da hipocrisia não é, por conseguinte, falar daqueles que se deixam enredar nelas: destes há os que conscientemente manipulam factos, sentimentos e discursos – são os hipócritas – e há os que, sem se darem conta, lhes prestam o mais eficaz dos serviços.
Na comunicação em que anuncia ao país a promulgação da lei do referendo sobre o aborto, Cavaco Silva insiste na necssidade de tempo para que as pessoas sejam devidadmente esclarecidas e diz esperar que o debate “decorra com dignidade e elevação”.
Mas é caso para perguntar? (E note-se que não pergunto apenas ao Presidente da República, porque antes dele, outras pessoas com grande responsabilidade na formação da opinião pública utilizaram o mesmo tipo de discurso)
A quem se recomenda esta “dignidade e elevação”? A todos ou apenas aos que estão de um lado da barricada?
A todos?
Mas então, como se explica que a cada momento deparemos com discursos, artigos de jornal, debates e programas televisivos, utilizando as mais variadas agressões, de que as mais graves são sempre de ordem cultural, para levar os elitores a dizer sim no tal referendo?
Sinceramente, as recomendações de “dignidade e elevação”, repetidas com tanta insistência por parte dos defensores do sim, soam a hipocrisia, porque pode muito bem estar aí uma arma contra a universalidade do direito de falar.
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