segunda-feira, outubro 16, 2006

A INTELIGÊNCIAD DOS BURROS


Chamaram-me burro de carga.
Confesso que não gostei; tive até um movimento interior de revolta que sustive a custo, sobretudo porque me sentia rebaixado com tal metáfora.
Depois, pensando melhor, achei que ficava muito aquém desse animal, teimoso, forte, leal ao dono, apesar dos maus tratos, aguentando intempéries e caminhos tortuosos, com gestos de revolta, raros, e algum humor – pode um burro ter sentido de humor?- pelo meio.
Por isso não resisto à tentação de recontar a história que ouvi há muitos anos, acrescentando à versão original apenas dois ou três pormenores que essa versão permite imaginar.

Era uma vez um homem que tinha um burro...
Não. Era uma vez um burro irrequieto que pertencia a um homem rico, mas distraído. Tão distraído que não se deu conta da enorme armadilha que constituía para o seu burro irrequieto o poço largo e fundo, sem tampa nem água, felizmente que sem água, do arneiro onde o animal iludia a fome com ervas secas e alguns pinotes: pinotes de burro, claro, porque de imitações estava o animal farto.
E aconteceu que, num destes pinotes, sem quê nem para quê, o bichinho irrequieto, só não deu com os focinhos no fundo porque, graças ao diâmetro do poço, ele pôde, não se sabe bem como, talvez utilizando o contra-peso das orelhas, puxadas sobre o dorso, erguer a cabeça desorientada.
Mas não conseguiu evitar a tragédia de chegar lá abaixo e se sentir encurralado, sem nenhuma hipótese de libertação.
É claro que o burro não conhecia a linguagem adequada aos pedidos de socorro a donos distraídos como era o seu.
Foi pelo instinto. E o instinto era zurrar, zurrar... até que alguém fosse ver o que se passava.
Aparecu o dono; mas só porque aquele zurrar desesperado o incomodava.
Por isso tratou de fazer calar o animal. E, já que não lhe parecia economicamente viável tirá-lo do fundo do poço, decidiu enterrá-lo. Assim, dizia para consigo, com um pau mato dois coelhos: cala-se o burro e esconde-se poço.
A operação de transportar terra para o buraco começou rápida, porque o burro não parava de zurrar. Veio terra, muita terra... À medida que as pazadas caíam no fundo do poço, fazia-se menos premente o zurro do animal.
Até que ficou tudo em silêncio, e o dono, felicitando-se pela excelente ideia que tivera, correu a ver se ainda faltava muito para encher o buraco.
Qual não foi o seu espanto quando se deu conta de que o burro, o seu burro irrequieto, o mirava com os olhos enormes e, sacudindo a terra das orelhas, também enormes, saltava para foa do poço e corria, aos coices e aos guinchos, arneiro abaxo.
Chegaste para mim – disse o proprietário, mirando o fracasso parcial da operação. Devia ter atirado uns pedregulhos primeiro, para tu morreres debaixo deles.
Inteligência de burro ou ineficácia patronal?
Pensando bem, hoje seria mais difícil a um burro que zurrasse no fundo do poço salvar-se como se salvou o burro irrequieto do nosso proprietário distraido.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

É muita referência a burro nos seus blogs. Uma estória engraçada e com algum ensinamento. Espero que os empregados não contem a mesma aos seus patrões!
:-)

9:21 da tarde  

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