peço a palavra

sexta-feira, abril 28, 2006

TOLERÂNCIA OU CINISMO?


Para relançar o debate acerca da Europa, sobre a qual uma certa classe política teima em lançar os destroços de um tratado constitucional abortado, pareceu-me útil transcrever um passo do discurso pronunciado pelo ainda cardeal J. Ratzinger, no Subiaco, a 1 de Abril de 2005;
A afirmação de que a menção das raízes cristãs da Europa ferem os sentimentos dos muitos não-cristãos que existem na Europa, é pouco convincente, visto que se trata, antes de mais, de um facto histórico que ninguém pode seriamente negar. Naturalmente, esta indicação histórica contém também uma referência ao presente, dado que, ao mencionar as raízes, também se indicam as fontes de orientação moral, ou seja, um factor de identidade desta formação que é a Europa.
Quem seriam os ofendidos? Que identidade seria ameaçada? Os muçulmanos, que a este respeito costumam ser frequentemente citados, não se sentem ameaçados pelos nossos fundamentos morais cristãos, mas pelo cinismo de uma cultura secularizada, que também lhes nega os fundamentos religiosos.
E os concidadãos judeus também não se sentem ofendidos com a referência às raízes cristãs da Europa, visto que estas raízes mergulham no monte Sinai: trazem a marca da voz que se fez ouvir no monte de Deus e unem-se nas grandes orientações fundamentais que o Decálogo proporcionou à humanidade.
O mesmo vale para a referência a Deus: não é a menção de Deus que ofende os membros de outras religiões, mas sim a tentativa de construir a comunidade humana absolutamente sem Deus.

domingo, abril 23, 2006

OS EQUÍVOCOS DO PADRE JERÓNIMO


A inflação das telenovelas, constitui um sintoma infalível do baixo nível cultural de toda uma nação; e ainda do despudor com que se manipulam as massas, ao serviço da ambição de lucro das grandes empresas.
Mas, por isso mesmo, seria extremamente perigoso ignorar essa realidade: Ignorar sobretudo a persistência com que se tenta lavar o cérebro às pessoas esquematizando problemas complexos, às vezes extremamente graves, propondo soluções simplistas.
Há que estar atentos, não naturalmente para inventar mecanismos de censura; não para impedir seja o que for, mas para saber por onde vai a descaracterização da nossa cultura, pondo assim em risco a sobrevivência da nação (a gens, dos romanos).
É por isso que às vezes desperdiço alguns minutos a acompanhar esses subprodutos das culturas em decadência… que é o que acontece com as culturas ocidentais.

Em dei-te quase tudo, abordam-se entre outras, a questão das sequelas de amores mal vividos, ou instrumentalizados, ao serviço de causas inconfessáveis… e por esse portal entram ódios fratricidas, incestos, assassínios, a burla como vingança.
Tenho andado a ver em que param as danças e contra-danças do incesto de Joana e Rodrigo, que o guionista retrata bem como vítimas de uma enorme quantidade de erros acumulados, incluindo os que brotam da sua própria falta de senso.
E os parentes desfazem-se em iniciativas que possam afastar os dois jovens um do outro, quase com a obsessão de um fantasma que se transforma no protagonista principal, relegando as pessoas para um nível de presença na memória colectiva que facilite a sua rápida eliminação… tal como acontece com Gergory, o homem-barata da Metamorfose.
E é neste universo familiar que surge o Padre Jerónimo, o tio sacerdote ao qual recorre a pobre Joana, que acaba de descobrir que está grávida do próprio irmão.
Não sei se é intencional ou não; mas pode dizer-se que os autores do guião conseguiram criar, nesta figura de padre de mente dualista, dançando entre o pelagianismo e o predestinacionismo, um belo exemplo da tal má consciência.que tanto escandalizava Sartre.
Escrevo estas linhas influenciado pelas intervenções do Padre Jerónimo nos dois últimos episódios de Dei-te quase tudo…
Como pode um tio prescindir da sua condição de sacerdote, quando se trata de ajudar uma sobrinha que recorre a ele precisamente porque é sacerdote?
Será coerente invocar o dever do segredo quando se anda continuamente a violá-lo? Todas as conversas do Padre Jerónimo, após a revelação da sobrinha, levam as pessoas a suspeitar do segredo e do seu conteúdo.
E como se pode invocar a pecaminosidade do incesto para justificar um pecado muitíssimo mais grave?
E será teologicamente correcto afirmar que alguém é filho do pecado? Pode o pecado gerar a vida? Saberá este padre que o pecado é uma noção teológica, isto é, diz respeito às nossas relações com Deus?
Francamente. Padre Jerónimo parece ter andado a ler os teólogos nominalistas onde Lutero foi buscar as estruturas mentais que o impediram de equacionar correctamente o mistério da colaboração da liberdade do homem com a graça de Deus.
E causa-me muita pena que seja precisamente um padre o primeiro personagem deste drama a apontar uma porta de saída que não tem em conta os direitos e o futuro das duas pessoas mais implicadas no drama: a mãe e o filho: é evidente que Padre Jerónimo, ao recomendar o aborto à sobrinha, está empenhado em defender a pele de muita gente, de todos, provavelmente… de todos, menos da sobrinha e do filho que ela traz no ventre.