A inflação das telenovelas, constitui um sintoma infalível do baixo nível cultural de toda uma nação; e ainda do despudor com que se manipulam as massas, ao serviço da ambição de lucro das grandes empresas.
Mas, por isso mesmo, seria extremamente perigoso ignorar essa realidade: Ignorar sobretudo a persistência com que se tenta lavar o cérebro às pessoas esquematizando problemas complexos, às vezes extremamente graves, propondo soluções simplistas.
Há que estar atentos, não naturalmente para inventar mecanismos de censura; não para impedir seja o que for, mas para saber por onde vai a descaracterização da nossa cultura, pondo assim em risco a sobrevivência da nação (a gens, dos romanos).
É por isso que às vezes desperdiço alguns minutos a acompanhar esses subprodutos das culturas em decadência… que é o que acontece com as culturas ocidentais.
Em dei-te quase tudo, abordam-se entre outras, a questão das sequelas de amores mal vividos, ou instrumentalizados, ao serviço de causas inconfessáveis… e por esse portal entram ódios fratricidas, incestos, assassínios, a burla como vingança.
Tenho andado a ver em que param as danças e contra-danças do incesto de Joana e Rodrigo, que o guionista retrata bem como vítimas de uma enorme quantidade de erros acumulados, incluindo os que brotam da sua própria falta de senso.
E os parentes desfazem-se em iniciativas que possam afastar os dois jovens um do outro, quase com a obsessão de um fantasma que se transforma no protagonista principal, relegando as pessoas para um nível de presença na memória colectiva que facilite a sua rápida eliminação… tal como acontece com Gergory, o homem-barata da Metamorfose.
E é neste universo familiar que surge o Padre Jerónimo, o tio sacerdote ao qual recorre a pobre Joana, que acaba de descobrir que está grávida do próprio irmão.
Não sei se é intencional ou não; mas pode dizer-se que os autores do guião conseguiram criar, nesta figura de padre de mente dualista, dançando entre o pelagianismo e o predestinacionismo, um belo exemplo da tal má consciência.que tanto escandalizava Sartre.
Escrevo estas linhas influenciado pelas intervenções do Padre Jerónimo nos dois últimos episódios de Dei-te quase tudo…
Como pode um tio prescindir da sua condição de sacerdote, quando se trata de ajudar uma sobrinha que recorre a ele precisamente porque é sacerdote?
Será coerente invocar o dever do segredo quando se anda continuamente a violá-lo? Todas as conversas do Padre Jerónimo, após a revelação da sobrinha, levam as pessoas a suspeitar do segredo e do seu conteúdo.
E como se pode invocar a pecaminosidade do incesto para justificar um pecado muitíssimo mais grave?
E será teologicamente correcto afirmar que alguém é filho do pecado? Pode o pecado gerar a vida? Saberá este padre que o pecado é uma noção teológica, isto é, diz respeito às nossas relações com Deus?
Francamente. Padre Jerónimo parece ter andado a ler os teólogos nominalistas onde Lutero foi buscar as estruturas mentais que o impediram de equacionar correctamente o mistério da colaboração da liberdade do homem com a graça de Deus.
E causa-me muita pena que seja precisamente um padre o primeiro personagem deste drama a apontar uma porta de saída que não tem em conta os direitos e o futuro das duas pessoas mais implicadas no drama: a mãe e o filho: é evidente que Padre Jerónimo, ao recomendar o aborto à sobrinha, está empenhado em defender a pele de muita gente, de todos, provavelmente… de todos, menos da sobrinha e do filho que ela traz no ventre.