peço a palavra

sexta-feira, janeiro 18, 2008

QUEM TEM MEDO DE QUEM


II
O fim da tolerância

Passam rapidamente os últimos dias da minha demora em Roma.
Sejam quais forem os fantasmas que esta palavra desperta no coração das pessoas, ninguém pode levar-me a mal que o aproveite para revigorar uma fé tão frágil como o meu ser físico, moral, psíquico e intelectual.
A fé encarna em cada um de nós, à semelhança do que acontece com a cultura e a memória cultural dos povos: e aqui está uma das razões por que gosto de Roma, também como crente.
Não cultivo, penso eu, nenhuma espécie de supersticioso apego às coisas; mas aproveito as sugestões e ajuda que podem dar-me para subir da realidade temporal aos átrios da vida eterna.
Era por isso que queria passar pelo túmulo do Apóstolo Pedro, antes de partir... talvez para não mais voltar.
Mas eu não vim a Roma como turista; e a peregrinação, se quis fazê-la, foi inserindo-a num plano de trabalho demasiado absorvente, para que nele coubessem pausas demoradas.
Assim, ir a São Pedro, desta vez, não vai ser fácil, porque o tempo que exigem as normas de segurança é demasaido para o meu programa. Voltarei a outra hora... mas temo ter de regressar a casa sem dar a meu coração de crente este conforto.
E venho pensando que isto é mesmo o fim da tolerância.
Num mundo dominado pelo medo, é fácil criar barreiras a tudo quanto seja contrário às fontes, reais ou fantasiosas, do terrorismo.
Não interessa se é islâmico ou de qualquer outra estirpe: todo o terror, seja de que tipo for, é inimigo da liberdade. E isto, tanto o terrorismo activo, como o passivo.
Nem sei como podem continuar a considerar-se democráticos países onde a sociedade, com os poderes constituídos à frente, está permanentemente a ceder à chantagem do terrorismo internacional.

domingo, janeiro 13, 2008

QUEM TEM MEDO DE QUEM

I
INTRODUÇÃO

Desde os últimos dias do ano findo que me assalta teimosamente a vontade de escrever sobre o assunto: mas assalta-me igualmente a dúvida, às vezes também o medo. Isso mesmo: o medo de falar dos nossos medos.
Vou tentar abrir a janela com um texto que nasceu aqui, em Roma, quando há mais de dez anos, nesta cidade, preparava o trabalho em que depois foi inserto.
Fala-se do século XVI, mas tomando-o como fundo no qual, segundo a minha opinião, podemos descobrir algumas chaves para as nossas inquietações deste início de milénio.
Aí vai o texto, naturalmente de compreensão um pouco amis difícil, por lhe faltar o contexto:
Na imensa confusão deste período – confusão que, em si mesma considerada, tem muito de positivo – as primeiras vítimas, como já prevenira Cristo na parábola do joio que os criados incompetentes queriam arrancar da seara nascente, foram precisamente os que os extremistas diziam querer salvar .
Todos sabemos que heresia e ortodoxia são palavras que o uso, no campo religioso, como em qualquer outro onde tome importância o debate das ideias, transformou em bandeira de combate que raramente favorece a verdade.
Esta sobreviverá a todos os naufrágios, não pela violência dos que matam em nome dela, mas pela teimosia dos que morrem por ela. Foi assim neste século, será assim em todos os tempos e em todas as latitudes.
É por isso que não entusiasmam muito certas formas de rever o passado, agora com particular impacto perante a opinião pública: porque mais do que pedir perdão pelo erro dos que pensaram servir a verdade matando, o homem do terceiro milénio precisa de analisar a generosidade dos que a salvaram morrendo por ela.
Morrer pela verdade é também dedicar-se às tarefas sem brilho, à abertura dos caboucos, ao transporte dos materiais... a função do servente, que nunca aparecerá na lista dos arquitectos, desses de que se ocupará, por toda a espécie de razões, o discurso histórico, sem nunca dizer o nome dos que tornaram possível a sua fama.
Não vai muito longe o tempo em que o ensino da história pátria se limitava ao elenco das guerras e dos heróis que as ganhavam.
E diz-se ganhavam, porque só eram tomadas em consideração as guerras ganhas: por isso não se falava daqueles que as haviam provocado, a não ser quando se podiam contar entre os heróis da vitória final, mesmo que as vicissitudes da guerra lhes não tivessem permitido ver tal vitória.
Esta mentalidade ficou de tal modo arraigada na nossa cultura, que ainda hoje se tende a procurar, na história do pensamento, quer filosófico quer teológico, mais uma história da heterodoxia do que a fecundidade da inteligência humana, quando reflecte sobre a verdade: verdade que tanto pode estar assente apenas nos postulados da razão – a verdade filosófica – como apoiar-se na luz da Revelação – a verdade teológica.
É evidente que, tanto num caso como no outro, caminhando por tentativas, nem todos os passos são bem sucedidos: muitas vezes o caminho torna-se de tal modo sinuoso que alguns ou têm a coragem de repensar a caminhada, voltando mesmo atrás, para seguirem novos rumos, ou se perdem por completo. Destes, quando filósofos, diz-se que erraram; quando teólogos, diz-se que caíram na heresia.
Claro, falamos de verdades sobre as quais não pode haver duas opiniões; e, mesmo assim, no campo da teologia, nem todo aquele que erra é um verdadeiro herege: porque pode haver muitos erros, em questões que, embora porventura importantes na vida de certos crentes, não pertencem àquele corpo de verdades que fazem e cimentam uma comunhão de fé.
Não se nega que também os desvios, as guerras, os erros e as heresias fazem parte da história das sociedades, dos indivíduos e das nações.
E no campo da teologia, como na história da Igreja, as heresias e os cismas foram sempre ocasião para se aprofundarem verdades – umas vezes esquecidas, outras vividas de forma demasiado imperfeita, quando não errada -, e de se corrigirem modos de estar no mundo já não condizentes com a missão recebida do Fundador.
O que não se aceita é a importância que se lhes tem dado, em detrimento precisamente daquilo que muitas vezes está na sua origem: ou seja, a insatisfação e o inconformismo da pessoa humana; insatisfação e inconformismo dos quais nasce todo o progresso.
Ora esta insatisfação e este inconformismo, que fazem avançar o género humano para a plenitude do seu destino, não se revelam apenas na heterodoxia. A história – concretamente a do século que nos ocupa – está mesmo recheada de acontecimentos, aparentemente revolucionários e que, no entanto, pela impaciência que os faz eclodir, só não acabam matando o progresso, graças, quer à generosidade de alguns dos seus protagonistas, quer à força da verdade que, apesar de tudo, encerram .

sábado, janeiro 05, 2008

O PERIGO DAS ESTATÍSTICAS


Do Natal ao Ano Novo, aproveitando a companhia de um grupo de amigos que organizaram a sua vida de modo a passarem comigo esta quadra, foi um ver se te avias, visitando os lugares mais emblemáticos da Cidade Eterna... Designação que, ao contrário do que pensa muita gente, veio a Roma antes de a ela chegar o Príncipe dos Apóstolos, que, ao morrer nela como seu bispo, a transformou em “cabeça da Caridade”, segundo a belíssima expressão de Santo Inácio de Antioquia.
Não foi o primeiro Natal que tive a felicidade de passar em Roma; mas foi o primeiro em que cheguei a sentir-me cansado da multidão com que tropeçávamos a cada passo; em toda a parte, como se o mundo se tivesse deslocado para o centro da Cristandade.
Este facto tem muitas leituras possíveis, todas legítimas e nenhuma imune de crítica, porque, em meu entender, trata-se de um fenómeno quase puramente circunstancial, sem qualquer significado transcendente.
Falar de números e fazer estatísticas, neste caso, interessará sobretudo aos que exploram o turismo: às pessoas e instituições, da Igreja ou da sociedade civil, que vivem dos que, por um motivo ou por outro, demandam estas paragens, onde se contemplam marcas de mais de trinta séculos de história.
Isto faz-me pensar num dos principais vícios da pastoral do nosso mundo ocidental: ou seja, a teimosia com que se usa e abusa dos números para classificar trabalho que deve dirigir-se essencialmente às pessoas, sempre refractárias, precisamente na medida em que são pessoas, a enquadramentos formais, de produção em série.
No seu discurso aos bispos portugueses, por ocasião da visita Ad sacra limina Apostolorum, diz Bento XVI:
À vista da maré crescente de cristãos não praticantes nas vossas dioceses, talvez valha a pena verificardes «a eficácia dos percursos de iniciação actuais, para que o cristão seja ajudado, pela acção educativa das nossas comunidades, a amadurecer cada vez mais até chegar a assumir na sua vida uma orientação autenticamente eucarística, de tal modo que seja capaz de dar razão da própria esperança de maneira adequada ao nosso tempo» (Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis, 18).
Torna-se difícil explicar o pensamento do Papa sem que se esclareça devidamente a questão do praticante e do não praticante: certamente que não se trata de procurar encher de novo as igrejas, até porque a chamada prática dominical, ao longo da história do cristianismo europeu, tem passado por variadíssimas fases, de mais e de menos, que nos dizem claramente como foi errado centrar tantas vezes nela uma pastoral que se queria renovadora.
Se a minha análise tem alguma probabilidade de estar correcta, o que o Papa diz, no fundo, é que não nos devemos preocupar tanto com o encher as igrejas, como sobretudo de cuidar a formação das pessoas, procurando renovar, como ele diz, os percursos de iniciação actuais. O que talvez tenha como resultado imediato, não o aumento, mas a diminuição dos números que enchem as estatísticas, tão do agrado da comunicação social.
Sem querer chocar ninguém e tomando um pensamento que me vem de longe, acho que a diminuição da prática religiosa, pelo menos no modo habitual de entendê-la, não significa, só por si, aumento de cristãos não praticantes.

terça-feira, janeiro 01, 2008

RESPIGANDO I


Laicidade e neutralidade

Por razões de trabalho – aliás, poderia ser por quaisquer outras, desde que não implicassem contradição interna do meu ser e agir – encontro-me nas margens do Tibre. Procuro de novo contactar em Roma, que acumula vestígios de milénios – insisto, milénios de cultura – com um dos maiores humanistas portugueses que por aqui passaram. Ele, que foi o fundador da primeira biblioteca pública nesta cidade, fora dos muros do Vaticano, não tem sequer uma rua a assinalar a sua presença nestas paragens.
Estou por aqui, com um plano concreto de trabalho que me não permite perder muito tempo com a comunicação social, que pouco se distingue da nossa, se exceptuarmos a moderação dos noticiários – bastante mais breves, mas igualmente deprimentes – e a abundância de produções culturais.
Gosto de passar os olhos pelos artigos de opinião, quando não se ocupam exclusivamente de política.
Num dos mais recentes, PIERGIORGIO ODIFREDDI, em polémica com alguns dos fundadores do novo Partido Democrático, que pretende ser laico de forma inovadora – na Itália, esta questão do laico vrs católico tem o seu quê de folclórico -, procura dar a sua definição de laicidade, com um esforço a meu ver meritório, mas que não resiste a uma análise rigorosa da ingenuidade em que assenta.
Claro. Pessoalmente também não tenho nenhuma espécie de simpatia por ideologias políticas que se valem de uma certa linguagem dita cristã para avalizar posições que podem muito bem ser tomadas por crentes e não crentes: inclusivamente, como será o caso do Pd, para justificar a sua laicidade. Em política, na minha fraca opinião, o clericalismo, seja de direita, seja de esquerda, transforma-se sempre no mais violento dos anti-clericalismos.
O Senhor P. Odifredi acha que, ao contrário dos deputados aderentes ao Pd, descobriu o verdadeiro meio termo entre clericalismo e anti-clericalismo. Como? Vivendo e agindo com total indiferença perante os valores religiosos.
Transcrevo apenas dois passos, em tardução livre do italiano:
Em relação às religiões e à Igreja, “limito-me simplesmente a constatar que têm visões do mundo contrárias à visão científica, e de um modo geral à racionalidade; concluo daí que seria bom que permanecessem confinadas no âmbito privado”.
Segundo ele, a autoridade pública devia “agir como se a religião e a Igreja não estivessem lá, sem naturalmente fazer nada para que não estejam. Esta posição é um compromisso entre os dosi extremos do clericalismo e do anti-clericalismo”.
O Senhor Odifredi não repara que faz uma classificação ideológica das religiões e da Igreja; classificação a partir da qual advoga um comportamento, por parte da autoridade civil, não apenas discriminatório, mas, em definitiva persecutório.
De facto, “agir como se a religião e a Igreja não estivessem lá, sem naturalmente fazer nada para que não estejam”, só é possível nas mentes abstractas, que não fazem caso do concreto da existência das pessoas: Se eu ajo como se os que me rodeiam não existissem, que condições de vida lhes proprociono?
Se um estado pura e simplesmente ignora a dimensão religiosa dos cidadãos, como pode considerar-se livre e democrático?
Em meu entender, um estado democrático que o seja verdadeiramente não pode confundir neutralidade com laicidade: por isso não aceito que um estado seja laico, porque a profissão do laicismo é já uma tomada de posição anti-religiosa. O estado democrático não deve ser confessional, mas deve ter em conta as confissões religiosas dos cidadãos e, sem favorecer nenhuma delas só porque é uma confissão religiosa, criar-lhes condições de existência, no quadro da democracia, que está ao serviço do cidadão e não o cidadaão ao serviço da democracia.