peço a palavra

quarta-feira, janeiro 31, 2007

O EQUÍVOCO DAS PALAVRAS


Todos os mestres que tivemos, todos os livros que lemos e todos os mitos que descodificámos, todos, sem excepção, nos ensinaram que a Grécia foi o berço da democracia.
Há dias, num blog que encontrei quando procurava outra coisa, li que tudo ali começou, inclusivamente a celebração do Dia da Mãe.
E foi esta leitura dos ritos da fecundidade, a partir de uma linda imagem de Reia, com uma das filhas, provavelmente Deméter – referência a cultos que, vindos do Oiente, tinham muito pouco da ternura maternal – que me levou a trazer para aqui alguns fragmentos de uma reflexão que vem de longe e que diz respeito a essa teimosia de considerar a Grécia Antiga como criadora da democracia.
Certo, a palavra, que nos chegou sob a forma latina de democratia, é de origem grega, e, olhando apenas aos elementos que a compõem, poderíamos dizer que significa o poder do povo. Alguns dizem governo do povo, pondo o povo como sujeito desse governo. Mas, de facto, não é tal o significado original da palavra.
Dizer, porém, que os Gregos são os criadores do regime democrático apenas porque, a dado momento da história das suas instituições, Atenas criou uma forma de autoridade a que deu o nome de democracia, só é possível se, com este termo, em vez de nos referirmos às instituições atenienses, estivermos a pôr na Grécia do século V a. C. ideias e realidades europeias dos séculos mais recentes.
Porque a chamada democracia grega, não tinha nada, ou quase nada de comum com a democracia, tal como a entendemos hoje.
Claro que se trata de um regime que surge para corrigir os abusos do poder cometidos pelo governo de um só: a tirania - mais uma palavra que nos pode enganar se a tratamos como a palavra democracia.
Pondo de lado a extrema complexidade dos sistemas de governo nas cidades gregas dos séculos sexto e quinto, digamos que, num certo sentido, a democracia, nesse contexto, significava de algum modo um recuo, pois situava-se entre a aristocracia e a tirania.
Isto é, tendo em conta a etimologia, ao poder dos melhores – aristocracia -, que tanto encantava Platão, opunha-se agora o poder do demos, que não era propriamente o povo, mas um determinado grupo de cidadãos.
E aqui temos outra palavra equívoca: porque cidadão – polites, habitante da polis – na Grécia do século V, não era todo aquele que vivia na cidade – asty, lat. urbs – mas o homem livre, que pertencia a uma minoria de gente rica. E eram só estes que tinham direito ao nome de politai, cidadãos. E só eles podiam participar na assembleia – boulê - que deliberava sobre o regimento da cidade.
De modo que não vejo como se pode falar de democracia, pelo menos como a entendemos hoje, a respeito da Grécia Antiga.
Ou talvez saiba:
A constante e cada vez mais vasta identificação das nossas instituições com realidades semelhantes do passado, nomeadamente do mundo greco-romano, nasce da perda progressiva dos conteúdos superiores com que vinte séculos de cristianismo enriqueceram o nome dessas instituições: enriquecimento de tal ordem, que de muitas delas não ficou senão o nome.
Será por isso que se cometem tantas tropelias em nome da democracia? Que se multiplicam os fracassos da plítica ocidental nas campanhas em prol da democratização de povos que não têm nada a ver com a nossa cultura?
De facto, as modernas democracias europeias, apesar de tantas imperfeições, assentam num princípio impossível de encontrar fora do cristianismo: a igualdade radical de todos os seres, unidos pela sua origem e funcionalidade ao serviço da felicidade do homem, o únco que é capaz de ser verdadeiramente feliz.
O homem, a pessoa humana, que é anterior ao cidadão.
Aliás, quando se começa a falar de iguldade dos cidadãos perante a lei, regressando mais uma vez à Grécia, corre-se o risco de estar a destruir o que é essencial na democracia: o respeito sagrado pelo que nos introduz na cidade dos homens, ou seja a vida.
A vida humana, claro!
Vida que é um processo único, apesar de complexo, sem soluções de continuidade, contendo, desde o primeiro instante da sua existência, um projecto divino que faz dela um dom e uma tarefa: o dom é de Deus e dos corações que a acolhem, a tarefa é de todos, incluindo o Estado, a polis, não a grega, que deixava de lado a maioria das pessoas, mas a cristã, que não conhece senão uma raça, a dos filhos de Deus.

segunda-feira, janeiro 22, 2007

DIÁLOGO DE SURDOS III


DIÁLOGO DE SURDOS III

Costumamos falar de diálogo de surdos quando os que discutem – pessoas ou instituições – partem para a discussão, não para se entenderem, mas para imporem os seus pontos de vista, cada qual com o intuito de vencer o outro.
Assim que para nós, quando dizemos que alguém entra num diálogo de surdos, a pessoa ou entidade em questão já está classificada: consciente ou inconscientemente, rotulamo-la de intolerante, para não dizer hipócrita.
Mas há outro conceito de diálogo de surdos que seria bom não esquecer, até porquer qualquer de nós, com a melhor das intenções, pode entrar em tal quadro e perder, não só o diálogo, mas, com os fundamentos dele, o entendimento que ele poderia gerar.
Repare-se que falo de entendimento, condição essencial para a paz e a convivência, não falo de acordo, que, de facto, só é necessário quando queremos empreender algo em comum.
Quando, por exemplo, duas pessoas discutem sobre determinado tema empregando termos que dependem de mundos culturais diferentes, se não têm em conta esse facto, correm o risco de não se entenderem na defesa do mesmo ponto de vista.
A história cultural do ocidente está recheada de exemplos, que seria bom não esquecer para não se repetirem os erros do passado, nomeadamente no diálogo entre as igrejas.
Outro exemplo: quem já pensou que falar de democracia, como a entendemos hoje, sobretudo numa cultura de raiz cristã, não tem qualquer sentido para milhões de habitantes do globo?
E há ainda outra deficiência que pode transformar as nossas discussões públicas em diálogos de surdos:
Quando, perante um problema que pode ser encarado sobre diferentes perspectivas, cada um adopta a sua, não se dando conta de como isso relativiza os argumentos que uiliza contra o seu interlocutor.
O ideal seria que se começasse por identificar a perspectiva e que serenamente se chegasse a acordo sobre qual é a mais abrangente... e só depois se discutiriam as soluções propostas.
Veja-se, por exemplo, o que acontece com as discussões sobre o aborto (chamo-lhe aborto, porque uma das mais graves violações das regars do diálogo está precisamen nas alterações da linguagem destinadas a alterar subreticiamente o quadro psicológico do racicínio do nosso interlocutor):
Como podem entender-se duas pessoas que discutem sobre o aborto, uma irredutivelmente situada do lado de quem quer, não importa a razão, acabar com uma gravidez, enquanto a outra não vê senão a vida que o aborto destrói?
Seria tão mais fecunda uma discussão que começasse por analisar a vida humana como aquilo que ela é!..
Não se trata de chegar a acordo: mas de travar uma discussão civilizada, em que as pessoas se entendem, ainda que fique cada qual na sua posição; sem amargura nem agressõse recíprocas, porque cada qual pode dizer o que pensava.
Claro, isto pode aprecer uma utopia.
Mas não vejo outro modo de esclarecer a verdade.

sexta-feira, janeiro 05, 2007

DIÁLOGO DE SUJRDO II


Mais preocupados com o comércio da notícia do que com a informação correcta dos seus leitores (no caso dos jornais), dos seus ouvintes (no caso dos emissores de rádio), dos seus espectadores (no caso da televisão), os meios de comunicação social decidiram desta vez procurar elementos de polémica nas intervenções doutrinais da hierarquia católica.
Claro que assim essas intervenções acabam por ter um impacto que não teriam se os pescadores de águas turvas que abundam por aí não se ocupassem tanto de semear a confusão; mesmo que os pastores tivessem cumprido, como no geral cumpriram, o seu dever de iluminar com a recta doutrina o pensamento dos fiéis.
Mas não deixa de ser um triste sintoma que os jornais tenham reduzido, ou tentado reduzir, a mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz e as homilias dos bispos portugueses do primeiro dia do ano ao que disseram sobre o aborto.
No caso da mensagem do Papa, atendo-nos aos dois parágrafos transcritos no post anterior, no vasto elenco de atentados contra a paz denunciados com tanta clareza, se tenha visto apenas o aborto e as pesquisas sobre os embriões; com a agravante de isso se referir em tom de rejeição, manipulando o texto de modo a dizer-se que o Papa compara o aborto com o terrorismo.
E, para insistir, pergunta-se aos leitores, desta vez às leitoras, se estão de acordo com tal comparação.
Li num jornal de grande circulação no país a resposta de duas senhoras: uma que defende o sim, no próximo referendo, outra que defende o não.
Tenho pena que ambas as senhoras hajam respondido como se de facto o Papa tivesse feito tal comparação e que, ao menos a segunda, antes de responder que está de acordo, não tivesse feito uma análise correcta do texto.
A primeira, responde ironicamente que sim, que há terrorismo numa lei que castiga a mulher que aborta: por isso defende o sim.
Faltou-lhe apenas dizer três coisas que todos os defensores do sim escondem sistematicamente: primeiro, que há trinta anos que em Portugal nenhuma mulher é levada à prisão por ter abortado. Segundo, que o próximo referendo não pede um sim para acabar com os castigos, mas para tornar legal a destruição, com o dinheiro dos cidadãos, de vidas humanas indefesas, sem que para tal se exija qualquer causa justificativa.
Finalmente, ainda que o Papa não tenha dito isso, nem sequer de modo indirecto, que há terrorismo no aborto é claro para quem conseguir analisá-lo com um mínimo de serenidade. Terrorismo, sim: em primeiro lugar, contra a mulher, que, em mais de noventa por cento dos casos, não abortaria se a ajudassem, como precisa e tem direito; contra a mulher, que será a maior vítima do aborto realizado nela, mesmo quando plenamente consentido. E, mas isto já todos sabem, contra um ser indefeso, violando o mais sagrado e radical dos direitos, que é o dreito de viver, quando se recebeu o dom da vida, e o dador, que é Deus, quer que esse dom se desenvolva.

quinta-feira, janeiro 04, 2007

DIÁLOGO DE SURDOS-I


Diálogo de surdos?

I

Sem querer aumentar o coro de vozes que se erguem por toda a parte contra aquilo que já alguém classificou de prostituição da comunicação social, desejava partilhar com os visitantes deste blogue parte das reflexões que, com imensa dificuldade, sobretudo nos últimos meses, tenho conseguido erguer por entre gritos de revolta, quando me dou conta do péssimo serviço... melhor, do mal que a escravatura idelógica dos meios de comunicação social faz aos seus utentes.
Falemos da mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz:
Lado bom: como já aconteceu com o discurso de despedida da cátedra de Ratisbona, primeiro, depois com a sua viagem à Turquia e respectivos discursos, nunca um texto pontifício foi tão discutido.
Lado mau: talvez como resultado do mesmo – leituras ideológicas são sempre leituras parciais -, oitenta por cento, pelo menos, do que se disse, ocupou-se de uma parte mínima, que, apesar da sua importância, fora do seu contexto pode se manipulada em todos os sentidos.
Aliás, em Portugal, os jornais fizeram o mesmo às homilias dos bispos que no dia um de Janeiro se referiram ao tema do aborto, integrando-o no texto pontifício.
O Papa, que quer falar da Pessoa humana, coração da paz, diz a certa altura:

4. O dever de respeitar a dignidade de cada ser humano, em cuja natureza se reflecte a imagem do Criador, tem como consequência que não se possa dispor da pessoa arbitrariamente. Quem detém maior poder político, tecnológico, económico, não pode aproveitar disso para violar os direitos dos outros menos favorecidos. De facto, é sobre o respeito dos direitos de todos que se baseia a paz. Ciente disso, a Igreja faz-se paladina dos direitos fundamentais de cada pessoa. De modo particular, ela reivindica o respeito da vida e da liberdade religiosa de cada um. O respeito do direito à vida em todas as suas fases estabelece um ponto firme de importância decisiva: a vida é um dom de que o sujeito não tem completa disponibilidade. Igualmente, a afirmação do direito à liberdade religiosa põe o ser humano em relação com um Princípio transcendente que o furta ao arbítrio do homem. O direito à vida e à livre expressão da própria fé em Deus não está nas mãos do homem. A paz necessita que se estabeleça uma clara fronteira entre o que é disponível e o que não o é: assim se evitarão intromissões inaceitáveis naquele património de valores que é próprio do homem enquanto tal.

5. Quanto ao direito à vida, cabe denunciar o destroço de que é objecto na nossa sociedade: junto às vítimas dos conflitos armados, do terrorismo e das mais diversas formas de violência, temos as mortes silenciosas provocadas pela fome, pelo aborto, pelas pesquisas sobre os embriões e pela eutanásia. Como não ver nisto tudo um atentado à paz? O aborto e as pesquisas sobre os embriões constituem a negação directa da atitude de acolhimento do outro que é indispensável para se estabelecerem relações de paz estáveis. Mais: no que diz respeito à livre manifestação da própria fé, outro sintoma preocupante de ausência de paz no mundo é representado pelas dificuldades que frequentemente tanto os cristãos como os adeptos de outras religiões encontram para professar pública e livremente as próprias convicções religiosas. No caso particular dos cristãos, devo ressaltar com tristeza que por vezes não se limitam a criar-lhes impedimentos; em alguns Estados são mesmo perseguidos, tendo-se registado ainda recentemente episódios de atroz violência. Existem regimes que impõem a todos uma única religião, enquanto regimes indiferentes alimentam, não uma perseguição violenta, mas um sistemático desprezo cultural quanto às crenças religiosas. Em todo o caso, não se respeita um direito humano fundamental, com graves repercussões sobre a convivência pacífica, o que não deixa de promover uma mentalidade e uma cultura negativas para a paz.
Não quero alongar demasiado este post, nem agravar, com comentários parciais, o facto de ter retirado o texto do seu contexto.
Mas gostaria de convidar os meus visitantes a ler estes dois números, que estão no centro da mensagem do Papa, como um todo, não se fixando em partes isoladas, porque é no conjunto que adquirem todo o signifcado.
Tome-se como frase síntese o segundo período da primeira parte: De facto, é sobre o respeito dos direitso de todos qu se baseia a paz.